Preciso escolher UMA abordagem psicológica, mas VÁRIAS me chamam atenção, e agora?!



O estudante de psicologia entra na faculdade cheio de fantasias, pensando geralmente que a psicologia é um lugar mágico, onde todos os conflitos podem ser conciliados, que por meio desta o ser humano será melhor “resolvido” e que ela pode dar todas as respostas para o comportamento humano, ou então, oferecer uma chave para decifrar a mente. Doce ilusão!

No primeiro período você já aprende que esta ciência é dividida em várias “escolas de pensamento” que são chamadas de “abordagens”, e que em muitos momentos, elas dizem coisas totalmente contrárias umas das outras, mas que se você for investigar um pouco mais a fundo, verá que muita coisa faz sentido em todas, e que algumas, às vezes não fazem.

Dificilmente você encontrará um crivo para determinar qual teoria é válida em detrimento da outra, haja vista que existem inúmeros estudos teóricos e empíricos que baseiam as práticas que nelas existem, e que, por incrível que pareça, conseguem apresentar resultados satisfatórios mesmo que por caminhos diferentes.

A questão é que nós somos “impelidos” a escolher, e esta escolha passa a ser cada vez menos orientada por uma filosofia de base bem fundamentada, pois ainda nos primeiros períodos temos pouco embasamento teórico tanto para compreender pontos específicos, quanto para criticar. Mas a questão é que a gente sofre certa pressão para “escolher”, como se a nossa psicologia dependesse daquilo (e de fato, grande parte das elaborações teóricas dependem). Daí a gente conhece algum professor bacana, daquele descolado, ou que possui um discurso que a gente se identifica, ou mesmo daquele que rola certa admiração por qualquer coisa que ele faça ou pareça... e as nossas escolhas teóricas passam a ser mais políticas do que técnicas: a gente escolhe primeiro a nossa abordagem e depois faz um esforço danado para estudar e justificar esta escolha.

Mas o problema é que, muitas vezes, ainda que meio sem saber justificar teoricamente, a gente também se vê numa encruzilhada de gostar um pouco da psicanálise e um pouco da análise do comportamento, ou um pouco do psicodrama e da teórica cognitivo comportamental. “E agora, José?”

Essa celeuma, quando não bem resolvida, costuma resultar em dois tipos de grupos, ou melhor, dois times: de um lado temos aqueles que são ortodoxamente doutrinados à um dogma científico, que juram amor eterno à uma abordagem, nada mais que a abordagem até que a morte os separe (e criam um verdadeiro fã clube)... e de outro lado temos uma galera meio que “paz e amor” que acha que a psicologia é um vale tudo teórico, que basta pegar tudo e colocar num grande liquidificar que no final sai um mix que vai dar tudo certo... As duas estão equivocadas!

O objetivo deste texto é combater dois males epistemológicos (que nomão da p****!) de forma descomplicada: o dogmatismo e o ecletismo, dois lados da mesma moeda do fanatismo religioso-científico. O dogmatismo, que é uma visão estreita de mundo, com uma única forma de pensamento, fechada à possibilidade da diversidade (Rodrigues dos Santos, 2016), e o ecletismo, que é um movimento marcado por “escolher partes específicas de teorias distintas fundindo-as sem a criação de uma articulação coerente e pertinente” (Rodrigues dos santos, 2016, p. 7). Ambas as visões estão baseadas na dificuldade de articular as pesquisas científicas atuais com as distintas formas de lógica, como campo da filosofia.

Em minha pesquisa de mestrado, onde me propus a investigar sobre a fragmentação teórica da psicologia, entendi que parte desta problemática encontra-se na dificuldade da psicologia reconhecer-se como campo plural de conhecimento, fruto de uma pobre articulação deste campo com a filosofia, e por conta de crenças cegas em pressupostos elaborados por Thomas Kuhn (1922-1996). Não vou me delongar demais nisso, o texto ficaria muito denso e chato para isso.

A questão é que a ciência, antes questionada apenas por religiosos, passou a ser questionada pelos próprios cientistas quando, da virada do século XX para o XXI, com descobertas nos campos da física quântica, matemática, química e neurologia e fisiologia, colocou em cheque premissas básicas que guiavam a investigação científica nos últimos séculos por meio dos métodos empíricos. Exemplos disso seriam o teorema da incompletude, de Gödel; o princípio da incerteza de Heisenberg;, a mecânica quântica, de Einstein e Planck; descobertas sobre percepção sensorial, de Guidano; por exemplo.

Estas questões intrigaram um conjunto de cientistas de várias áreas, desde os químicos como Ilya Prigogine (1917-2013) e Isabelle Stengers (1949-), biólogos como Humberto Maturana (1928-) e Francisco Varela (1946-2001), Físicos como Heinz Von Foerster (1911-2002) e Evelyn Fox Keller (1936-), Filósofos como Giles Deleuze (1925-1995), Félix Guatarri (1930-1992) psicólogos como Harold Goolishian (1924-1991), Harlene Anderson (1942), e em meu ponto de vista, um dos maiores nomes deste hall, Edgar Morin (1921-), filósofo, sociólogo e antropólogo.

Tais pesquisadores começaram uma verdadeira revolução ao desenvolverem teorias que colocavam em xeque os pilares das ciências modernas, como a crença cega na experimentação como critério único de acesso ao real. Mas não vou me alongar sobre isso.

A proposta aqui é introduzir a noção de Complexidade, desenvolvida por Morin desde a década de 1970, com base em um conjunto de estudos desenvolvidos em vários centros avançados de pesquisa ao redor do mundo. Complexidade não quer dizer complicação, mas se refere a uma propriedade do real, do mundo, da vida, que diz respeito à interconexão das coisas: o mundo possui muito mais ligações que podemos compreender. A etimologia da palavra 'complexidade', que vem do latim, significa “aquilo que é tecido junto” (Morin, 1996). Daí o objetivo do Pensamento Complexo é o de ser uma tentativa de religar saberes que foram, por conta do método disjuntivo, reducionista e mecanicista do empirismo, separados historicamente.

O pensamento Newtoniano-Cartesiano que imperou nas ciências durante séculos passou a ser desafiado por outro tipo de lógica, uma lógica que deixou de tentar isolar os objetos e reduzi-los para tentar compreendê-los em todas as suas redes, articulações e conexões. Não, caro leitor, a complexidade não tenta jogar fora os avanços das ciências até o presente momento, de forma alguma, ela os reconhece, mas ela também aponta as limitações metodológicas trazidas por esta forma de pensar. O pensamento complexo, por exemplo, tenta compreender elementos que só aparecem quando se articulam aquilo que as ciências modernas tentaram separar, um grande exemplo disso, foi “profeticamente” elaborado por Vigotski, em sua crítica ao método positivista na psicologia, ainda que quando Morin era uma criança de colo

Pode ser comparado à análise química da água em hidrogênio e oxigênio, elementos que, cada um de per si não possuem as propriedades do todo e possuem propriedades que não existem no todo. O estudante que utilizar este método na investigação de uma qualquer propriedade da água — por exemplo qual a razão por que a água apaga o fogo — verificara com surpresa que o hidrogênio arde e que o oxigênio alimenta o fogo. Estas descobertas não lhe serão de grande utilidade na resolução dos problemas. A psicologia enfia-se na mesma espécie de beco sem saída quando analisa o pensamento verbal nos elementos que o compõem — a palavra e o pensamento — e estuda cada um deles em separado (Vigotski, 2018, p. 10)

Ou seja, cada método tem seu motivo de existir, e Morin aponta para a necessidade de se ampliar a forma como se olha para o mundo, religando elementos que foram isolados, que por isso, gerou uma compreensão às vezes isolada do todo, e das relações todo-parte. Vigotski conseguiu enxergar essas limitações no método da psicologia, Morin conseguiu enxergar estas limitações no método das ciências como um todo, e eu estou tentando apontar (pretensamente) estas dificuldades nas abordagens da psicologia, uma tarefa nada fácil.

Como eu terei que encerrar o texto por aqui, para ele não se alongar mais do que eu gostaria, precisarei fazer um corte rápido e seco: existem muitas outras possibilidades para se pensar a psicologia do que aquela forma seca e nos foi apresentada. E estas possibilidades não significam que nos faltará rigor metodológico ou epistemológico.

Resumindo, por meio do Pensamento Complexo é possível articular as abordagens da psicologia em uma nova ótica, uma nova forma de compreensão, que não joga fora conhecimentos opostos, pelo contrário, tenta compreender quais as possíveis articulações e complementaridades podem estar presentes nas contradições. Fazendo isso, não se perdem as relações que existem entre as partes.

E para finalizar, as abordagens conversam entre si, ainda que brigando, pois como psicólogos, acima de todos, precisamos compreender que mesmo as brigas são formas de comunicação, e dizem algo sobre a natureza dos brigantes. É possível pensar a psicologia para além das caixinhas que a colocamos, de forma trandisciplinar, e é isso que pretenderei abordar daqui em diante em meus textos. Vamos nessa?

Referências
Morin, E. (1996a). Epistemologia da Complexidade. Em, D. F. Schnitman (Org.). Novos paradigmas, cultura e subjetividade (pp. 274-286). Porto Alegre: Artes médicas.

Rodrigues dos Santos, M. (2016). A crise e a fragmentação teórica da psicologia: uma visão do Pensamento Complexo. Dissertação de Mestrado, Universidade Federal de Goiás, Goiânia.

Vigotski, L. S. (2018). Pensamento e linguagem. Ebook disponível em: http://www.ebooksbrasil.org/adobeebook/vigo.pdf


Sobre o autor:

Murillo Rodrigues dos Santos, psicólogo (CRP 09/9447) graduado pela Pontifícia Universidade Católica de Goiás (Brasil), com formação em Terapia de Casais e Famílias pela Universidad Católica del Norte (Chile). Mestre em Psicologia pela Universidade Federal de Goiás (Brasil). Doutorando em Psicologia Clínica e Cultura pela Universidade de Brasília (Brasil). Possui formações em Gestão, Empreendedorismo e Políticas pela Fundação Getúlio Vargas (Brasil), Fundación Botín (Espanha), Fondattion Finnovarregio (Bélgica), Brown University (EUA) e Harvard University (EUA). Diretor do Instituto Psicologia Goiânia, psicólogo clínico e organizacional.

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