Uma análise histórico-cultural da ascensão do movimento evangélico na psicologia brasileira


O movimento evangélico começa na reforma protestante com a afixação das 95 teses de Martinho Lutero (1483-1546) no dia 31 de outubro de 1517 na catedral de Wittenberg (sim, este ano completa-se 500 anos de reforma protestante), uma cidade alemã, e leva este nome graças a um movimento de protesto contra diversos abusos praticados pela igreja católica daquela época e que por isso gerou uma grande divisão clerical e social.

Este movimento é, em meu ponto de vista, um dos três marcos de transição da Idade Média para a Idade Moderna: a queda de Constantinopla em 1453, o descobrimento da América pelo europeus, com Cristóvão Colombo em 1492 e a reforma protestante mudam a forma de viver da humanidade, marcando a diminuição do poder católico, a transição do feudalismo para o capitalismo e inaugurando um novo modelo ético para a sociedade ocidental[i].
Mas faço aqui um parêntesis para um pequeno flashback: O movimento evangélico é, comumente descrito por meio de três ondas, que são períodos ou modelos de expressão da fé protestante - a primeira onda é conhecida como Protestantismo Tradicional ou Histórico, é marcada por um tipo de fé mais ligada à liturgia e teologia exegética; o Protestantismo Pentecostal (aqui já começa a se desenhar o contorno "evangélico"), marcado por um tipo de fé mais "mágica" com forte ênfase em rituais de cura, milagres e exorcismos; e a terceira onda é a do Protestantismo Neopentecostal (aqui o contorno evangélico se torna "gospel"), que é marcado por uma suavização do movimento pentecostal, mas ainda com forte ênfase na teatralidade (que passa a ser desenvolvida com maior uso de tecnologia, shows, uso de televisão) e diversificação do público alvo. Eu particularmente costumo pensar que o "evangelicalismo" surgiu na segunda onda, pois a partir do pentecostalismo demarca-se uma mudança completa na forma de ser dos seguidores "protestantes".
As primeiras igrejas protestantes chegaram ao Brasil junto com os movimentos de Franceses e Holandeses (respectivamente em 1557 e 1630), com igrejas tradicionais e com cultos restritos somente às comunidades estrangeiras, pois a religião oficial do Império era a católica e outros cultos eram proibidos. Mas o aumento da imigração e comércio inglês no Brasil também trouxeram consigo a Primeira Igreja Anglicana em 1816, com a pressão política de seus membros sob o imperador pela liberdade jurídica de culto, que foi permitida por meio da Constituição Imperial  de 1824. O que ocorre é que a partir deu-se uma série saltos cronológicos para o estabelecimento de outras denominações, como a Igreja  Luterana em 1824, a Congregacional em 1858 (primeira igreja protestante de língua portuguesa no país), a Presbiteriana em 1862, a Metodista em 1867, a Batista em 1871, dentre outras, sendo todas estas as igrejas Protestantes Históricas.

Cabe lembrar que a Reforma Protestante se deu apenas 17 anos depois da chegada dos portugueses ao Brasil.

Mas estas igrejas, assim como o país, já no século XX, eram muito dependentes das metrópoles e grandes centros urbanos estrangeiros da época: surgia no ano de 1906, na Rua Azusa, nos Estados Unidos uma nova forma de culto, que nasceu de uma pequena igreja chamada Missão da Fé Apostólica, cujo culto era muito barulhento, marcado por sessões frenéticas de êxtase psicológico, e que funcionava por horas, às vezes dias a fio de forma ininterrupta. Essa pequena igreja gerou uma profunda revolução na cristandade e foi o berço do pentecostalismo no mundo.

Esse movimento pentecostal chegou ao Brasil em 1910, com dois missionários suecos chamados Daniel Berg e Gunnar Vingren, que depois de passarem um tempo nos Estados Unidos, vieram a Belém do Pará e fundaram o que hoje é a maior denominação evangélica do mundo, a Igreja Assembleia de Deus, e a primeira igreja pentecostal do país... é a partir daqui que as coisas começam a ficar historicamente mais agitadas no protestantismo do país.

O pentecostalismo cresce assombrosamente no país entre as classes mais pobres, quando a Assembleia de Deus expande-se rapidamente para o Amazonas, Nodeste e com retirantes que desciam para São Paulo e todo o Sul-Sudeste do país. Este tipo de pentecostalismo tinha um grande apelo às camadas mais excluídas da sociedade, e dominou o cenário pentecostal até um momento de transição: no ano de 1960 era criada a Igreja Pentecostal de Nova Vida (IPNV), no Rio de Janeiro com o bispo Walter Robert McAlister (1930-1993), que seria importante para um momento posterior da história.

No ano de 1962 fundou-se uma importante denominação, conhecida por sua radicalidade no que diz respeito à usos e costumes: a Igreja Pentecostal Deus é Amor, criada pelo Missionário Davi Miranda (1935-2015), proíbe membros de jogarem futebol, usarem bermudas, terem televisões e uso de diversos cosméticos. Quem não conhece esta igreja e geralmente está acostumado a vê-la em "portinhas de periferia" com simples bancos de madeira, mal sabe que foi e continua sendo uma das maiores igrejas com ênfase em curas, exorcismos e milagres do Brasil, tanto que era foi detentora por quase 20 anos do título de maior igreja do país, com capacidade para 60 mil pessoas sentadas, e possui atualmente 1,5 milhões de membros em todo o mundo, espalhados por mais de 21 mil congregações.

"Mas porque estamos lendo tudo isso, Murillo?" Simples, porque a compreensão do presente depende da história! E precisamos entender como os evangélicos surgiram e se espalharam pelo país. E justamente por isso, podemos entender que, depois de 67 anos de pentecostalismo no Brasil, surge um pentecostalismo de transição, bastante peculiar, que marca a transição para o neopentecostalismo - A Igreja Universal do Reino de Deus (IURD), nasce no Rio de Janeiro, com o Bispo Edir Macedo (1945 - ), no ano de 1977, com forte apelo midiático através do uso de emissoras rádios e posteriormente televisões (hoje é dona da segunda maior emissora de TV do país, a Rede Record), e surge com forte apelo de rivalização à religiões como umbanda, quimbanda, candomblé e espiritismo kardecista, atribuindo possessões demoníacas às divindades destas religiões, explorando bastante a questão do exorcismo, e utilizando-se de linguagem semelhante aos elementos místicos e religiosos destas, como "Sessão do Descarrego", "Sal Ungido", "Encosto", etc.

A era das megaigrejas

Tempo de Salomão (IURD - São Paulo): igreja brasileira com a maior área construída.
O movimento da IURD se transformou em uma grande potencia religiosa e econômica, e serviu de inspiração para o surgimento de dissidências que também se convertiam em mega igrejas: a Igreja Internacional da Graça de Deus, do Missionário R. R. Soares (1947 -), nasce em 1980 a partir da IURD, tendo hoje o programa de TV Show da Fé como o maior do gênero "tele-evangelismo" da atualidade, chegando a 173 países do mundo, tendo a igreja mais de 5 mil congregações ao redor do mundo.

Outra denominação próxima, que surgiu paralelamente à IURD, originada da IPNV, foi a Igreja Evangélica Cristo Vive, no ano de 1985, com o pastor luso-angolano (hoje apóstolo) Miguel Ângelo da Silva Ferreira (1953 -), que no ano de 1990, já construía uma sede para 5 mil pessoas em Maricá, no Rio de Janeiro. Uma dos elementos interessantes desta igreja, que ajudam a identificá-la como pentecostalismo de transição, é que Miguel Ângelo foi um dos primeiros pastores no Brasil a ser ordenado apóstolo, em 1991 (você saberá sobre isso adiante).

A última das igrejas dissidentes da IURD, também uma pentecostal de transição, é a hoje famosa Igreja Mundial do Poder de Deus (IMPD) por conta de seu fundador apóstolo Valdomiro Santiago de Oliveira (1963 -), que foi bispo da IURD até ser expulso em 1998 e fundar sua própria denominação. Foi conclamado apóstolo por sua própria igreja no ano de 2006, investe pesadamente em mídias e acumula uma patrimônio milionário.

No ano de 2006 nasce a mais jovem das maiores expoentes do pentecostalismo de transição, a Igreja Apostólica da Plenitude do Trono de Deus, com o apóstolo Agenor Duque (data de nascimento desconhecida), da qual eu me pouparei de comentários devido ao nível de histeria da mesma que já fala por si (basta uma pequena busca no Youtube para verificar). Esta igreja está em franca ascensão, já conta com mais de 8 mil membros, e possui 34 congregações no Brasil.

Nasce o neopentecostalismo: Goiás na cena mundial

Sede da Igreja Videira (Goiânia) - Um templo para mais de 5 mil pessoas sentadas
O grande marco de nascimento do neopentecostalismo brasileiro surge com a Igreja Universal do Reino de Deus (IURD), que realiza uma grande quebra de padrão no cenário protestante nacional: ela expande-se para várias zonas no Brasil e a partir do momento em que consegue seu público cativo, especialmente as classes C, D e E da população economicamente ativa, começa a buscar uma forma de aperfeiçoar a sua pregação para alcançar outros nichos da sociedade: começam os cultos para os empresários, a nação dos 318 e outras iniciativas do tipo, como a construção de megatemplos luxuosos para as sedes regionais. Mas porque eu não considero a IURD uma igreja neopentecostal? Porque é uma igreja absolutamente endógena, mas apesar disso, lançadora de tendências. Como assim?

É comum no meio evangélico que pastores batistas sejam convidados para pregar em igrejas presbiterianas, pastores assembleianos pregarem em igrejas quadrangulares, etc., mas a Igreja Universal produz seus próprios pastores, não convida nenhum de fora para seus cultos, e nem libera qualquer um para pregar em outras denominações. Além disso, idealizou várias estratégias de "evangelização" e comercialização de produtos que perduram até hoje nas Igrejas de Pentecostalismo de Transição: Água, Rosa e Sal Ungidos, toalha, lenço ou qualquer outro produto ungido ou "profético", e uso de rádio e televisão para angariar fiéis, além de ser a precursora e maior expoente da teologia da prosperidade.

Existem quatro movimentos que aproximam as igrejas Pentecostais de Transição com as Neopentecostais: 1) a teologia da prosperidade; 2) o movimento apostólico; 3) a implementação de mídias e tecnologias na pregação; 4) uma teologia de batalha espiritual. Mas também existem dois movimentos que as distanciam: 1) o movimento celular (Igreja em Células, que são pequenos grupos de oração e estudo bíblico realizado nas casas, "onde cada crente é um líder"); 2) A "softização" dos usos e costumes (não se condena tatuagens, piercings, álcool, rock n' roll, festas juninas ou estereótipos de roupa, etc).

Dito isto, explico: houve uma quebra de padrão no pentecostalismo brasileiro especificamente na virada do milênio, especificamente entre os anos 1999 para 2001, quando três movimentos se encontram - quando 1) dissidentes do pentecostalismo de transição brasileiro se 2) encontraram com movimentos influenciados por Paul (David) Yonggi Sho (1936 -) que foi um pastor sul coreano precursor do modelo da Igreja em células, na Igreja do Evangelho Pleno de Yoido (uma Assembleia de Deus), o maior templo do mundo, com capacidade para 250 mil pessoas, e o 3) Movimento celular "G 12" do pastor colombiano Cesar Castellanos Domínguez (data de nascimento desconhecida). Este encontro se dá, especificamente com a vinda de Castellanos ao Brasil, para compartilhar seu modelo de doutrinação, o G-12, a convite de Valnice Milhomens, uma pastora brasiliense que seria consagrada apóstola em 2001.

Foi a partir deste encontro que floresceu o "movimento apostólico brasileiro", onde inicia-se uma leva de consagração de apóstolos (apesar de já ter dois apóstolos de renome no cenário nacional da época, Miguel Ângelo (ordenado em 1991) e Estevam Hernandes (ordenado em 1996)). Dois goianos foram "apóstolos-pioneiros": Sinomar Fernandes da Silveira, líder do Minstério Luz para os Povos, criado em 1987 e sediado em Goiânia, recebeu o título de apóstolo no ano de 2000; Cesar Augusto Machado de Souza, criador da Igreja Apostólica Fonte da Vida, recebeu o título de apóstolo em 2001. Sua igreja nasceu no ano de 1994 depois de uma dissidência que este teve com o bispo Robson Rodovalho, que foi seu cofundador da Igreja Comunidade Cristã de Goiânia - deste cisma nasceu também a Igreja Sara Nossa Terra, hoje sediada em Brasília.


O movimento "G-12" consiste em um modelo de gestão eclesiástica baseado no discipulado: um líder religioso forma seus "doze" discípulos, em que cada um destes doze deve gerar mais doze, e assim sucessivamente... Este modelo foi trazido por Castellanos da Colômbia ao Brasil, que formou seus "12" em lugares específicos, geralmente em mega igrejas: apóstola Valnice Milhomens (Brasília - DF), apóstolo Renê Terra Nova (Manaus - AM), apóstolo Sinomar Fernandes (Goiânia - GO), apóstolo Marco Antônio Thomazi (São Paulo - SP), apóstolo Delmir Bolzan (Cambuci - SP), pastor Laudijair Guerra (Brasília - DF), pastor Joaquim Antunes (Belo Horizonte - MG), pastor Ricardo Buçard (Belo Horizonte - MG), apóstolo Márcio Valadão (Belo Horizonte - MG), este último desligou-se muito cedo do movimento e fez desuso do título apostólico, preferindo ser chamado de pastor.

Algumas pessoas podem até não conhecer os nomes acima, ou a extensão do poder social, político e econômico que estas pessoas e suas organizações possuem, por isso vou dar alguns exemplos:

- Renê Terra Nova, é o líder do Ministério Internacional da Restauração (MIR), e se autoproclamou "paipóstolo" (título que recebeu inúmeras críticas no próprio meio evangélico),  por ser evidentemente o mais proeminente expositor do G-12 no Brasil e um dos responsáveis pela difusão de "apóstolos" no Brasil, tendo ordenado mais de 2 mil. Segundo o último número que tive acesso, o MIR possuía somente em Manaus mais de 40 mil membros. A sede da igreja comporta 9500 pessoas sentadas.

- Valnice Milhomens: foi a principal responsável pela vinda do G12 ao Brasil, líder da Igreja Nacional do Senhor Jesus Cristo (INSEJEC), que possui congregações em 7 países, já pregou para milhares de pessoas ao redor do Brasil e do mundo, possuindo grande influência política no meio evangélico.

- Sinomar Fernandes: líder do Ministério Luz para os Povos (MLP), é um dos maiores responsáveis pela difusão do G-12 no Centro Oeste brasileiro, foi um dos primeiros pastores líderes de mega igreja em Goiás - a sede do MLP possui espaço para mais de 5 mil pessoas sentadas. Estima-se que possua cerca de 300 igrejas pelo mundo, com mais de 30 mil membros. Desta igreja surgiu uma dissidência, que foi a Igreja Videira (com sede em Goiânia também), liderada pelo pastor Aluísio Antônio Silva, que conta hoje com cerca de 900 igreja pelo mundo, com estimativa de ter mais de 50 mil membros, e é famosa pela edição anual do "Radicais Livres", uma espécie de Show Gospel.

- Márcio Valadão: líder da Igreja Batista da Lagoinha, é uma das igrejas mais conhecidas do Brasil, especialmente por abrigar a banda musical "Diante do Trono", comandado por seus filhos Ana Paula, Mariana e André Valadão, grupo que já se apresentou para o público recorde de 2 milhões de pessoas na gravação de seu DVD "quero me apaixonar" (2004). É um dos maiores grupos gospel do mundo, que arrasta milhares de pessoas para seus shows (mais de uma vez já passaram da marca de shows com mais de 1 milhão de pessoas). A igreja em si possui mais de 78 mil membros.

Estas pessoas passaram a ser os novos representantes do evangelicalismo brasileiro, e foram grandemente responsáveis, em conjunto com centenas de outros líderes religiosos aqui não nomeados, pelo crescimento vertiginoso de evangélicos no país: em 1980 somente 6,6% da população brasileira se declarava evangélica, em 2010 este número era 22,2%[ii], e são hoje 29% segundo o Instituto Datafolha[iii], com estimativa de serem maioria populacional no ano de 2038.

Mas o que o neopentecostalismo tem a ver com a psicologia?

Pastor Silas Malafaia
Foi o neopentecostalismo que começou a ganhar as classe mais ricas da sociedade: o apelo social aos excluídos foi muito bem sucedido nas décadas de 70, 80 e começo de 90, mas os pentecostais começaram a fazer uma "franja de mercado" (termo da administração utilizado para quando uma instituição ou empresa começa a lançar um mesmo produto, só que adaptado para alcançar outra classe econômica que não era alcançada anteriormente), e na sua visão de evangelizar a todas as pessoas possíveis, começaram a melhorar a forma de seus discursos adequando-os para jovens e empresários.

A Igreja Universal do Reino de Deus, que no seu começo era basicamente composta de galpões alugados para o povo, passou a construir suntuosos prédios e chamá-los de catedrais, com fachadas espelhadas, suntuosas e luxuosas. A Igreja Renascer em Cristo, do apóstolo Estevam Hernandes, ficou famosa por ter como um de seus membros o ex-jogador de futebol Kaká (com seu dízimo milionário), e ficou marcada por ser uma das primeiras igrejas a investir pesado na música como meio de evangelismo - grupos como Renascer Praise e Banda Resgate saíram desta igreja e inspiraram a conversão de muitos jovens.

Outro exemplo bem sucedido de alcance da juventude foi a Igreja Bola de Neve, que nasceu de uma cisma com a Igreja Renascer no ano de 1999, que ficou famosa por líder seu apóstolo Rina, usar como púlpito uma prancha de surf, e agregar um público que antes era desprezado pelas igrejas pentecostais e tradicionais: rockeiros, hippies, surfistas e jovens tatoados.

Prancha de Surf que serve como púlpito para a a Igreja Bola de Neve: um símbolo para a juventude da igreja


Em Goiânia, "explodia" um movimento evangélico liderado pela Igreja Videira, que em 10 anos se transformou em uma mega igreja, a partir de 1999, com sua grande maioria de jovens. Por sua vez, a Igreja Batista da Lagoinha em Minas Gerais, com o grupo Diante do Trono, e hoje com o Pastor Lucinho arrastaram multidões de jovens. A Igreja Sara Nossa Terra também ficou profundamente marcada por um evangelismo voltado para jovens, e cresceu muito com este foco.

Ou seja, a partir de 1999 explodiu-se uma onde de conversão de jovens, empresários, pessoas com melhor poder aquisitivo, e consequentemente de pessoas com maior nível de escolaridade. Os próprios pastores evangélicos mudaram completamente o perfil: muitos deixaram de ser simples pregadores, com aparência campesina ou sem formação superior (os pastores de igrejas históricas geralmente eram formados em teologia, filosofia, mas eram poucos numericamente e geralmente de pequenas congregações; os pastores pentecostais geralmente não possuíam formação acadêmica ou mesmo educação formal, mas contavam com o carisma do povo e uma retórica inflamada), passaram a ter um discurso mais afinado com as vicissitudes de uma nova geração de jovens e empresários.

E os próprios líderes religiosos passaram a cursar psicologia: O famoso e polêmico pastor Silas Malafaia, que se tornou líder da Igreja Assembleia de Deus da Penha (RJ) em 2010, depois do falecimento de seu sogro (que naquela época era pastor presidente), colocou em marcha um grande projeto de expansão da Igreja, cuja meta de curto prazo (2017) era alcançar 10 mil membros e a de longo prazo (indefinido) é ter mil congregações (tinham 97 em 2010, abriram 250 em 2016), mudando o nome para Igreja Assembleia de Deus Vitória em Cristo. Silas Malafaia é formado em psicologia pela Universidade Gama Filho, no Rio de Janeiro, e comumente expressa fervorosas opiniões contrárias à homossexualidade, colocando-se ferrenhamente contra movimentos LGBT no campo da política - este modo fervoroso de Malafaia em pregações contra questões referentes à homossexualidade o colocou em choque contra o Conselho Federal de Psicologia no ano de 2013, em que foi alvo de uma nota de repúdio desta entidade[iv]. O estilo de retória de Malafaia é bastante ácido, e o pastor possui um humor com o estilo bastante colérico, com uma capacidade de argumentação acima da média dos pastores evangélicos, o que geralmente o coloca em posição de ataque e em diversas polêmicas na mídia.

Veja o vídeo de Malafaia criticando o CFP:



O pastor Malafaia era um grande crítico dos movimentos celulares e do neopentecostalismo, mas converteu-se ao movimento especialmente a partir do ano de 2010, quando se aproximou da teologia da prosperidade, inspirado especialmente por seu contato com os pastores Morris Cerullo e Mike Murdock (famosos e controversos expoentes estadunidenses da teologia da prosperidade). Outro ponto interessante é que Malafaia se aproxima de líderes como Renê Terra Nova e Valnice Milhomens, de quem era crítico contumaz. A aproximação com o movimento neopentecostal aumentou a exposição de Malafaia na mídia e consequentemente seu choque com temas relacionados à psicologia.

Mas Malafaia não é o único pastor de mega igreja formado em psicologia: o pastor presidente da Igreja Videira, Aluizio Silva é formado em Psicologia pela PUC Goiás, assim como a bispa Rubia Souza[v], líder da Igreja Apostólica Fonte da Vida (espora do Ap. Cesar Augusto). Segundo o site de sua própria igreja[vi], a bispa Lucia Rodovalho, líder da Igreja Sara Nossa Terra é formada em Psicologia pela Universidade Católica de Brasília, especialista em terapia de casais e famílias e doutora em filosofia. A apóstola Lilian Maria Ballester Marques, esposa do apótolo Arlles Marques, é psicóloga registrada sob o CRP 06/21130 (São Paulo).

Os nomes citados são referentes à líderes de igreja de renome nacional, e uma pesquisa mais exaustiva certamente revelaria outros nomes de peso, mas o certo é que, para além destes, existem nomes de comunidades locais, igreja médias, pequenas e grandes, filhos e filhas de pastores evangélicos que adentraram às universidades a partir dos anos 2000 (crescendo exponencialmente a partir de 2010). Eu mesmo me recordo de nos 5 anos de minha graduação (entre 2009-2014) ter tido aula ou conhecido 8 pastores em meu curso, e 5 filhas de pastores que estavam se preparando para atenderem melhor às suas comunidades.

E o que motivou os evangélicos a entrarem cada vez mais na psicologia?


Em suma eu pontuaria alguns fatores:

- O rompimento, por parte dos neopentecostais, de alguns preconceitos que reinavam no meio pentecostal, como o de que o "único conhecimento que importava era o da Bíblia", ou o de que "estudar demais faz a pessoa se desviar dos caminhos do Senhor" (muitos evangélicos já escutaram essas palavras de crentes "mais velhos" ou de algum pentecostal), por exemplo;

- O advento da Teologia da Prosperidade, que mesmo que não tenha atingido todos os neopentecostais, em diferentes níveis ajudou a gerar uma reflexão sobre a relação dos evangélicos com o dinheiro, de que não era pecado obtê-lo (este era mais um preconceito pentecostal, o de que "ganhar muito dinheiro era pecado", o que fadava muitos crentes à uma vida de pobreza) ;

- O "natural" aumento da escolaridade da população brasileira nos últimos vinte anos, fruto de diversas políticas públicas educacionais, assim como o empenho dos neopentecostais em atingir classes mais educadas da sociedade brasileira;

- E por último, e muito interessante, é que o movimento celular e  G12 foi um dos principais mecanismos para espalhar a Teologia da Batalha Espiritual, Libertação e Cura Interior: igrejas inteiras foram dedicadas à isto, como exemplo o Ministério Ágape de Reconciliação, da apóstola Neuza Itioka. Além de se especializarem em rituais de exorcismo ("Ministração de Libertação" na linguagem neopentecostal) passaram também a desenvolve o que chamam de "Ministério de Cura Interior" que é uma espécie de aconselhamento que mistura elementos de psicologia, teologia e das próprias crenças da comunidade. Este movimento de "Cura Interior" que cresceu muito no Brasil a partir dos anos 2000, por conta de forte influência de líderes estrangeiros como os apóstolos Peter Wagner (EUA), Chuck Pierce (EUA), Rony Chaves (Costa Rica), Cindy Jacobs (EUA), Harold Caballeros (Guatemala), Ana Méndez Ferrel (México), Bábara Yoder (EUA) e Edgar Silvoso (Argentina), que refinaram o interesse por manifestações psicológicas, parapsicológicas e "espirituais" - antigamente o interesse por "possessões demoníacas" estava mais a cargo da IURD e outras igrejas pentecostais de transição, mas eram quase sempre atribuídas à bruxarias e/ou disputas com religiões afrobrasileiras, sendo que o movimento da Teologia da Batalha Espiritual passou a interessar-se por questões psicológicas e a opor-se à religiões orientais e também ao movimento New Age, dentre outros.

Todos estes movimentos culminaram e fomentaram a ascensão dos evangélicos na psicologia brasileira nos últimos 20 anos.

E isso é algum problema?


Sim e não! Como sempre a resposta não é simples.

Os evangélicos, como quaisquer outros cidadãos, têm todo o direito e liberdade de fazerem o curso que quiserem, e há que se ressaltar que a condição ou profissão de uma crença não tornam necessariamente sujeito A ou B preconceituoso ou incapaz. Isso tem que ser dito pois já vi absurdos que beiravam ao fascismo de propor que evangélicos não deveriam fazer psicologia (sim, já vi estudante de psicologia propondo essa barbaridade).

Acreditar em Deus A ou B não faz de ninguém mais ou menos racional, pois o terreno da Ontologia da divindade não diz respeito à ciência, mas sim à filosofia. Logo acreditar em deus A ou B, ou ter crença X ou Z não são impeditivos para ninguém, DESDE QUE essas crenças não firam os direitos humanos.

Algumas pessoas também acusam os evangélicos de um pensamento "conservador", mas pensemos: se em uma sociedade todos fossem "progressistas", como nunca seremos homogênos, dentro dos próprios progressistas haveriam conservadores (pelo simples fato de não serem tão progressistas como os demais). Logo o pensamento conservador é condição sine qua non para o pensamento progressista, e lhe serve de contrapeso.

"Já sei Murillo, então o problema é o preconceito!" Sim... e não, cara pálida! Um fato é que todos nós temos preconceitos, e ninguém está 100% pronto a abandonar os seus; um exemplo: "você comeria uma barata frita?" (se a sua resposta foi não, saiba que existem muitas pessoas em países asiáticos que acham uma delícia, e que elas podem ser bem nutritivas). Nós vivemos em preconceitos, todos nós os temos e nunca seremos totalmente livres destes... o problema são os preconceitos lesivos, que muitas vezes são expressados de forma a ferir a dignidade e as liberdades do próximo. Estes sim, muitas vezes, são encontrados em líderes e fomentados em seus seguidores religiosos.

Daí que temos que entender a diferença entre dois termos: a religiosidade e a espiritualidade. A própria psicologia da religião vai estudar a diferença sobre estes! A primeira pode ser compreendida como um conjunto de crenças e ritos, muitas vezes irracionais, que são expressados de forma inconteste, inflexível, institucionalizada e muitas vezes reforçada socialmente. Sobre espiritualidade, pode se entender a devoção pessoal, singular do sujeito com seu numinoso[vii], e que não necessariamente afeta negativamente o meio social de quem a vive em decorrência de sua expressão.

Mas a psicologia é laica!


Sim, mas laicidade não significa antirreligiosidade!

Laicidade é uma postura de não influência da religião nas decisões políticas, sociais, econômicas, etc, etc... mas há uma questão conceitualmente filosófica aqui: o homo sapiens, também é homo socius, homo politicus, economicus e religiosus, e todos estes elementos coabitam no mesmo ser, e por isso nunca estará dissociado (pois a pessoa pode ser atéia de um deus, mas pode ter construído seu próprio deus de outra forma, ou ser crente na descrença).

"Mas, Murillo, os evangélicos só enchem o saco da população!" ou então "a religião nunca contribuiu em nada para a psicologia"... calma gafanhoto! Lembra da reforma protestante que eu falei no início do texto? Foi por ela, somente por ela, que foi possível desafiar o corrupto sistema católico medieval, desenvolver o capitalismo, urbanizar o mundo, avançar nas ciência e assim por diante até o nascimento da psicologia!

Mais especificamente: na era medieval católica a leitura e escrita eram de domínio da alta burguesia e do clero, que lia e rezava as missas em latim. Com a reforma protestante, um dos primeiro atos de Martinho Lutero foi a tradução da Bíblia para o alemão, e consequentemente a comunidade luterana passou a desenvolver um esforço enorme para alfabetizar as pessoas para que pudesse ler, afinal, um dos reclames da reforma protestante foi que todos pudesse examinar as escrituras.

Lutero era um monge altamente instruído, e foi a sua versão da Bíblia uma das grandes responsáveis por desenvolver o alemão moderno, assim como a filosofia alemã: os teólogos alemães se esforçavam bastante em conhecer o significado das palavras na bíblia, e foram os pais modernos da hermenêutica (ciência e arte de interpretação de textos), primeiramente teológica, e posteriormente filosófica, como por exemplo, através dos trabalhos de Friedrich Schleiermacher (1768-1834)[viii].

Foi o desenvolvimento da hermenêutica alemã, ligada diretamente à Lutero, que foi sendo desenvolvida também por teóricos como Wilhelm Dilthey (1833 - 1911), a Martin Heidegger (1889 - 1976), e posteriormente por Hans-Georg Gadamer (1900 - 2002), que abriram as janelas para a possibilidade de interpretação do fenômeno psíquico humano. Eu não acredito que foi coincidência a psicologia moderna ter surgido justamente na alemanha, com Wundt pois houve uma série de desenvolvimentos filosóficos, que saíram da hermenêutica e chegaram nas discussões idealismo vs. realismo, até as propostas filosóficas da Immanuel Kant (1724 - 1808) que prepararam o caminho para o surgimento de ma proposta de psicologia moderna.

Ainda assim, se você não estiver covencido de que a religião pode ter trazido algo de útil par a psicologia, veja a relação do cogito de Descartes (1596 - 1650) que são extraídas da filosofia de Agostinho de Hipona (354 - 430 d.C;), vulgo Santo Agostinho, e que ajudaram a influenciar o destino da ciência psicológica. Foram muitos os padres que trouxeram a psicologia para o Brasil[ix], e para Goiás[x]. Mas não só do cristianismo: religiões orientais também influenciaram a psicologia por meio de suas filosofias, como as contribuições que o Zen Budismo e o TAO levaram para a Gestalt Terapia.

O que quero dizer com isso?! Quero dizer que mesmo as religiões podem ter alguma filosofia útil, ou alguma semente de complexidade (eu adoro a analise que Edgar Morin faz sobre isso nos seu livro "Meus filósofos", quando fala das contribuições que Jesus e Buda deram para a sua filosofia, assim como Freud, Piaget e Bethoven... hehehe), mas que estas devem ser vistas sim sob um olhar laico: ter uma religião não significa necessariamente utilizar da mesma para querer obrigar ninguém à nada, mas tolerar as crenças sempre que respeitem os direitos humanos.

O problema é que o movimento evangélico muitas vezes "enche o saco da sociedade", não porque está cumprindo uma "missão divina de incomodar os infiéis a respeito de seus pecados", mas porque está cheio da contaminação de uma pequena burguesia religiosa que dita as regras para seus fiéis em busca de expandir seu poder político e econômico. Existem sim comunidade religiosas sinceras e autênticas, mas infelizmente os porões de muitas congregações estão cheios de corrupção (basta ver os vários escândalos que são noticiados envolvendo corrupção por parte de agências religiosas).

Neste sentido, para finalizar, não se deve utilizar as suas crenças religiosas dentro da psicologia, seja como ferramenta de dominação ou de imposição ideológica, mas estas sempre podem e devem ser examinadas à luz da própria ciência, afinal de contas, crenças são também compostas por mecanismos psicológicos. Por isso, há que frisar que laicidade não significa não poder acreditar, pregar ou debater as suas crenças, mas implica em uma relação de respeito à diversidade de crenças, posturas e sujeitos. Você concordaria comigo que precisamos de religiões cada vez mais laicas?

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Imagens: Extraídas do Google Imagens

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Murillo Rodrigues dos Santos, psicólogo (CRP 09/9447) graduado pela Pontifícia Universidade Católica de Goiás (Brasil), com formação em Terapia de Casais e Famílias pela Universidad Católica del Norte (Chile). Mestre m Psicologia pela Universidade Federal de Goiás (Brasil). Possui formações em Gestão, Empreendedorismo e Políticas pela Fundação Getúlio Vargas (Brasil), Fundación Botín (Espanha), Fondattion Finnovarregio (Bélgica), Brown University (EUA) e Harvard University (EUA). Diretor do Instituto Psicologia Goiânia, psicólogo clínico e organizacional, professor de psicologia da religião.







[i] Vide Max Weber em seu livro "A ética protestante e o espírito do capitalismo".
[ii] Dados do IBGE: http://censo2010.ibge.gov.br/noticias-censo?view=noticia&id=1&idnoticia=2170&t=censo-2010-numero-catolicos-cai-aumenta-evangelicos-espiritas-sem-religiao
[iii] Dados do Datafolha: http://datafolha.folha.uol.com.br/opiniaopublica/2016/12/1845231-44-dos-evangelicos-sao-ex-catolicos.shtml
[iv] Notícia da Nota de Repúdio do CFP: http://site.cfp.org.br/cfp-se-posiciona-contrariamente-declaracoes-do-pastor-silas-malafaia/
[v] Informações do Twitter da Bispa: https://twitter.com/bparubiadesousa e do Jornal o Popular: http://www.opopular.com.br/editorias/magazine/m%C3%A9rito-e-coragem-1.287844
[vi] Segundo site de sua própria igreja, no dia 09 de agosto de 2017: http://saranossaterra.com.br/bispa-lucia/
[vii] Dá uma Googlada para saber do que se trata, ou então vem fazer algum dos Cursos de Psicologia da Religião que eu ministro (hehehehe).
[viii] Para saber mais sobre as ideias de Schleiermacher: http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1517-24302012000200001
[ix] Vejam o exemplo do Padre Benkö Antal, professor da PUC Rio.
[x][x] Vide o exemplo do Padre Victoriano Baquero Miguel, profesor da PUC Goiás.

Um comentário:

  1. Que texto ótimo!
    Parabenizo pelas considerações aqui abordadas.
    Religião, comumente confundida com crença/fé, é agrupamento social.
    E, sim, concordo que precisamos de religiões mais laicas, com menos interesses relativos ao ego e ao poder (de influência, político e econômico).

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