O movimento evangélico começa na
reforma protestante com a afixação das 95 teses de Martinho Lutero (1483-1546)
no dia 31 de outubro de 1517 na catedral de Wittenberg (sim, este ano
completa-se 500 anos de reforma protestante), uma cidade alemã, e leva este
nome graças a um movimento de protesto contra diversos abusos praticados pela
igreja católica daquela época e que por isso gerou uma grande divisão clerical e social.
Este movimento é, em meu ponto de
vista, um dos três marcos de transição da Idade Média para a Idade Moderna: a
queda de Constantinopla em 1453, o descobrimento da América pelo europeus, com
Cristóvão Colombo em 1492 e a reforma protestante mudam a forma de viver da
humanidade, marcando a diminuição do poder católico, a transição do feudalismo
para o capitalismo e inaugurando um novo modelo ético para a sociedade ocidental[i].
Mas faço aqui um parêntesis para um pequeno flashback: O movimento evangélico é, comumente descrito por meio de três ondas, que são períodos ou modelos de expressão da fé protestante - a primeira onda é conhecida como Protestantismo Tradicional ou Histórico, é marcada por um tipo de fé mais ligada à liturgia e teologia exegética; o Protestantismo Pentecostal (aqui já começa a se desenhar o contorno "evangélico"), marcado por um tipo de fé mais "mágica" com forte ênfase em rituais de cura, milagres e exorcismos; e a terceira onda é a do Protestantismo Neopentecostal (aqui o contorno evangélico se torna "gospel"), que é marcado por uma suavização do movimento pentecostal, mas ainda com forte ênfase na teatralidade (que passa a ser desenvolvida com maior uso de tecnologia, shows, uso de televisão) e diversificação do público alvo. Eu particularmente costumo pensar que o "evangelicalismo" surgiu na segunda onda, pois a partir do pentecostalismo demarca-se uma mudança completa na forma de ser dos seguidores "protestantes".
As primeiras igrejas protestantes
chegaram ao Brasil junto com os movimentos de Franceses e Holandeses
(respectivamente em 1557 e 1630), com igrejas tradicionais e com cultos
restritos somente às comunidades estrangeiras, pois a religião oficial do
Império era a católica e outros cultos eram proibidos. Mas o aumento da
imigração e comércio inglês no Brasil também trouxeram consigo a Primeira
Igreja Anglicana em 1816, com a pressão política de seus membros sob o
imperador pela liberdade jurídica de culto, que foi permitida por meio da
Constituição Imperial de 1824. O que
ocorre é que a partir deu-se uma série saltos cronológicos para o
estabelecimento de outras denominações, como a Igreja Luterana em 1824, a Congregacional em 1858
(primeira igreja protestante de língua portuguesa no país), a Presbiteriana em
1862, a Metodista em 1867, a Batista em 1871, dentre outras, sendo todas estas
as igrejas Protestantes Históricas.
Cabe lembrar que a Reforma Protestante se deu apenas 17 anos depois da chegada dos portugueses ao Brasil.
Mas estas igrejas, assim como o
país, já no século XX, eram muito dependentes das metrópoles e grandes centros
urbanos estrangeiros da época: surgia no ano de 1906, na Rua Azusa, nos Estados
Unidos uma nova forma de culto, que nasceu de uma pequena igreja chamada Missão
da Fé Apostólica, cujo culto era muito barulhento, marcado por sessões
frenéticas de êxtase psicológico, e que funcionava por horas, às vezes dias a
fio de forma ininterrupta. Essa pequena igreja gerou uma profunda revolução na
cristandade e foi o berço do pentecostalismo no mundo.
Esse movimento pentecostal chegou
ao Brasil em 1910, com dois missionários suecos chamados Daniel Berg e Gunnar Vingren,
que depois de passarem um tempo nos Estados Unidos, vieram a Belém do Pará e
fundaram o que hoje é a maior denominação evangélica do mundo, a Igreja Assembleia de Deus, e a primeira
igreja pentecostal do país... é a partir daqui que as coisas começam a ficar
historicamente mais agitadas no protestantismo do país.
O pentecostalismo cresce
assombrosamente no país entre as classes mais pobres, quando a Assembleia de
Deus expande-se rapidamente para o Amazonas, Nodeste e com retirantes que
desciam para São Paulo e todo o Sul-Sudeste do país. Este tipo de
pentecostalismo tinha um grande apelo às camadas mais excluídas da sociedade, e
dominou o cenário pentecostal até um momento de transição: no ano de 1960 era
criada a Igreja Pentecostal de Nova Vida (IPNV), no Rio de Janeiro com o bispo Walter Robert McAlister (1930-1993),
que seria importante para um momento posterior da história.
No ano de 1962 fundou-se uma
importante denominação, conhecida por sua radicalidade no que diz respeito à
usos e costumes: a Igreja Pentecostal Deus é Amor, criada pelo Missionário Davi Miranda (1935-2015), proíbe membros
de jogarem futebol, usarem bermudas, terem televisões e uso de diversos
cosméticos. Quem não conhece esta igreja e geralmente está acostumado a vê-la
em "portinhas de periferia" com simples bancos de madeira, mal sabe
que foi e continua sendo uma das maiores igrejas com ênfase em curas,
exorcismos e milagres do Brasil, tanto que era foi detentora por quase 20 anos
do título de maior igreja do país, com capacidade para 60 mil pessoas sentadas,
e possui atualmente 1,5 milhões de membros em todo o mundo, espalhados por mais
de 21 mil congregações.
"Mas porque estamos lendo tudo
isso, Murillo?" Simples, porque a
compreensão do presente depende da história! E precisamos entender como os
evangélicos surgiram e se espalharam pelo país. E justamente por isso, podemos
entender que, depois de 67 anos de pentecostalismo no Brasil, surge um
pentecostalismo de transição, bastante peculiar, que marca a transição para o
neopentecostalismo - A Igreja Universal do Reino de Deus (IURD), nasce no Rio
de Janeiro, com o Bispo Edir Macedo
(1945 - ), no ano de 1977, com forte apelo midiático através do uso de
emissoras rádios e posteriormente televisões (hoje é dona da segunda maior
emissora de TV do país, a Rede Record), e surge com forte apelo de rivalização
à religiões como umbanda, quimbanda, candomblé e espiritismo kardecista, atribuindo
possessões demoníacas às divindades destas religiões, explorando bastante a
questão do exorcismo, e utilizando-se de linguagem semelhante aos elementos
místicos e religiosos destas, como "Sessão do Descarrego", "Sal
Ungido", "Encosto", etc.
A era das megaigrejas
Tempo de Salomão (IURD - São Paulo): igreja brasileira com a maior área construída. |
O movimento da IURD se transformou
em uma grande potencia religiosa e econômica, e serviu de inspiração para o
surgimento de dissidências que também se convertiam em mega igrejas: a Igreja
Internacional da Graça de Deus, do Missionário
R. R. Soares (1947 -), nasce em 1980 a partir da IURD, tendo hoje o
programa de TV Show da Fé como o maior do gênero "tele-evangelismo"
da atualidade, chegando a 173 países do mundo, tendo a igreja mais de 5 mil
congregações ao redor do mundo.
Outra denominação próxima, que
surgiu paralelamente à IURD, originada da IPNV, foi a Igreja Evangélica Cristo
Vive, no ano de 1985, com o pastor luso-angolano (hoje apóstolo) Miguel Ângelo da Silva Ferreira (1953 -),
que no ano de 1990, já construía uma sede para 5 mil pessoas em Maricá, no Rio
de Janeiro. Uma dos elementos interessantes desta igreja, que ajudam a
identificá-la como pentecostalismo de transição, é que Miguel Ângelo foi um dos
primeiros pastores no Brasil a ser ordenado apóstolo, em 1991 (você saberá
sobre isso adiante).
A última das igrejas dissidentes da
IURD, também uma pentecostal de transição, é a hoje famosa Igreja Mundial do
Poder de Deus (IMPD) por conta de seu fundador apóstolo Valdomiro Santiago de Oliveira (1963 -), que foi bispo da IURD até
ser expulso em 1998 e fundar sua própria denominação. Foi conclamado apóstolo
por sua própria igreja no ano de 2006, investe pesadamente em mídias e acumula
uma patrimônio milionário.
No ano de 2006 nasce a mais jovem
das maiores expoentes do pentecostalismo de transição, a Igreja Apostólica da
Plenitude do Trono de Deus, com o apóstolo Agenor
Duque (data de nascimento desconhecida), da qual eu me pouparei de
comentários devido ao nível de histeria da mesma que já fala por si (basta uma
pequena busca no Youtube para verificar). Esta igreja está em franca ascensão,
já conta com mais de 8 mil membros, e possui 34 congregações no Brasil.
Nasce o neopentecostalismo: Goiás na cena mundial
Sede da Igreja Videira (Goiânia) - Um templo para mais de 5 mil pessoas sentadas |
O grande marco de nascimento do
neopentecostalismo brasileiro surge com a Igreja Universal do Reino de Deus
(IURD), que realiza uma grande quebra de padrão no cenário protestante
nacional: ela expande-se para várias zonas no Brasil e a partir do momento em
que consegue seu público cativo, especialmente as classes C, D e E da população
economicamente ativa, começa a buscar uma forma de aperfeiçoar a sua pregação
para alcançar outros nichos da sociedade: começam os cultos para os
empresários, a nação dos 318 e outras iniciativas do tipo, como a construção de
megatemplos luxuosos para as sedes regionais. Mas porque eu não considero a IURD
uma igreja neopentecostal? Porque é uma igreja
absolutamente endógena, mas apesar disso, lançadora de tendências. Como
assim?
É comum no meio evangélico que
pastores batistas sejam convidados para pregar em igrejas presbiterianas,
pastores assembleianos pregarem em igrejas quadrangulares, etc., mas a Igreja
Universal produz seus próprios pastores, não convida nenhum de fora para seus
cultos, e nem libera qualquer um para pregar em outras denominações. Além
disso, idealizou várias estratégias de "evangelização" e comercialização
de produtos que perduram até hoje nas Igrejas de Pentecostalismo de Transição:
Água, Rosa e Sal Ungidos, toalha, lenço ou qualquer outro produto ungido ou
"profético", e uso de rádio e televisão para angariar fiéis, além de
ser a precursora e maior expoente da teologia da prosperidade.
Existem quatro movimentos que aproximam as igrejas Pentecostais de
Transição com as Neopentecostais: 1) a teologia da prosperidade; 2) o movimento
apostólico; 3) a implementação de mídias e tecnologias na pregação; 4) uma
teologia de batalha espiritual. Mas também existem dois movimentos que as distanciam: 1) o movimento celular (Igreja
em Células, que são pequenos grupos de oração e estudo bíblico realizado nas
casas, "onde cada crente é um líder"); 2) A "softização" dos
usos e costumes (não se condena tatuagens, piercings, álcool, rock n' roll,
festas juninas ou estereótipos de roupa, etc).
Dito isto, explico: houve uma quebra de padrão no
pentecostalismo brasileiro especificamente na virada do milênio,
especificamente entre os anos 1999 para 2001, quando três movimentos se
encontram - quando 1) dissidentes do pentecostalismo de transição brasileiro se
2) encontraram com movimentos influenciados por Paul (David) Yonggi Sho (1936
-) que foi um pastor sul coreano precursor do modelo da Igreja em células, na
Igreja do Evangelho Pleno de Yoido (uma Assembleia de Deus), o maior templo do
mundo, com capacidade para 250 mil pessoas, e o 3) Movimento celular "G
12" do pastor colombiano Cesar Castellanos Domínguez (data de nascimento
desconhecida). Este encontro se dá, especificamente com a vinda de Castellanos
ao Brasil, para compartilhar seu modelo de doutrinação, o G-12, a convite de
Valnice Milhomens, uma pastora brasiliense que seria consagrada apóstola em
2001.
Foi a partir deste encontro que floresceu o "movimento apostólico
brasileiro", onde inicia-se uma leva de consagração de apóstolos
(apesar de já ter dois apóstolos de renome no cenário nacional da época, Miguel
Ângelo (ordenado em 1991) e Estevam
Hernandes (ordenado em 1996)). Dois goianos foram "apóstolos-pioneiros":
Sinomar Fernandes da Silveira, líder
do Minstério Luz para os Povos, criado em 1987 e sediado em Goiânia, recebeu o
título de apóstolo no ano de 2000; Cesar
Augusto Machado de Souza, criador
da Igreja Apostólica Fonte da Vida, recebeu o título de apóstolo em 2001. Sua
igreja nasceu no ano de 1994 depois de uma dissidência que este teve com o
bispo Robson Rodovalho, que foi seu
cofundador da Igreja Comunidade Cristã de Goiânia - deste cisma nasceu também a
Igreja Sara Nossa Terra, hoje sediada em Brasília.
O movimento "G-12"
consiste em um modelo de gestão eclesiástica baseado no discipulado: um líder
religioso forma seus "doze" discípulos, em que cada um destes doze
deve gerar mais doze, e assim sucessivamente... Este modelo foi trazido por
Castellanos da Colômbia ao Brasil, que formou seus "12" em lugares
específicos, geralmente em mega igrejas: apóstola Valnice Milhomens (Brasília - DF), apóstolo Renê Terra Nova (Manaus - AM), apóstolo Sinomar Fernandes (Goiânia - GO), apóstolo Marco Antônio Thomazi (São Paulo - SP), apóstolo Delmir Bolzan (Cambuci - SP), pastor Laudijair Guerra (Brasília - DF),
pastor Joaquim Antunes (Belo
Horizonte - MG), pastor Ricardo Buçard
(Belo Horizonte - MG), apóstolo Márcio Valadão (Belo Horizonte - MG), este último desligou-se muito cedo do
movimento e fez desuso do título apostólico, preferindo ser chamado de pastor.
Algumas pessoas podem até não
conhecer os nomes acima, ou a extensão do poder social, político e econômico
que estas pessoas e suas organizações possuem, por isso vou dar alguns
exemplos:
- Renê Terra Nova, é o líder do
Ministério Internacional da Restauração (MIR), e se autoproclamou
"paipóstolo" (título que recebeu inúmeras críticas no próprio meio
evangélico), por ser evidentemente o
mais proeminente expositor do G-12 no Brasil e um dos responsáveis pela difusão
de "apóstolos" no Brasil, tendo ordenado mais de 2 mil. Segundo o
último número que tive acesso, o MIR possuía somente em Manaus mais de 40 mil
membros. A sede da igreja comporta 9500 pessoas sentadas.
- Valnice Milhomens: foi a
principal responsável pela vinda do G12 ao Brasil, líder da Igreja Nacional do
Senhor Jesus Cristo (INSEJEC), que possui congregações em 7 países, já pregou
para milhares de pessoas ao redor do Brasil e do mundo, possuindo grande
influência política no meio evangélico.
- Sinomar Fernandes: líder do
Ministério Luz para os Povos (MLP), é um dos maiores responsáveis pela difusão
do G-12 no Centro Oeste brasileiro, foi um dos primeiros pastores líderes de
mega igreja em Goiás - a sede do MLP possui espaço para mais de 5 mil pessoas
sentadas. Estima-se que possua cerca de 300 igrejas pelo mundo, com mais de 30
mil membros. Desta igreja surgiu uma dissidência, que foi a Igreja Videira (com sede em Goiânia
também), liderada pelo pastor Aluísio
Antônio Silva, que conta hoje com cerca de 900 igreja pelo mundo, com
estimativa de ter mais de 50 mil membros, e é famosa pela edição anual do
"Radicais Livres", uma espécie de Show Gospel.
- Márcio Valadão: líder da Igreja
Batista da Lagoinha, é uma das igrejas mais conhecidas do Brasil, especialmente
por abrigar a banda musical "Diante
do Trono", comandado por seus filhos Ana Paula, Mariana e André
Valadão, grupo que já se apresentou para o público recorde de 2 milhões de
pessoas na gravação de seu DVD "quero me apaixonar" (2004). É um dos
maiores grupos gospel do mundo, que
arrasta milhares de pessoas para seus shows (mais de uma vez já passaram da
marca de shows com mais de 1 milhão de pessoas). A igreja em si possui mais de
78 mil membros.
Estas pessoas passaram a ser os
novos representantes do evangelicalismo brasileiro, e foram grandemente
responsáveis, em conjunto com centenas de outros líderes religiosos aqui não
nomeados, pelo crescimento vertiginoso de evangélicos no país: em 1980 somente
6,6% da população brasileira se declarava evangélica, em 2010 este número era
22,2%[ii],
e são hoje 29% segundo o Instituto Datafolha[iii],
com estimativa de serem maioria populacional no ano de 2038.
Mas o que o neopentecostalismo tem a ver com a psicologia?
Pastor Silas Malafaia |
Foi o neopentecostalismo que
começou a ganhar as classe mais ricas da sociedade: o apelo social aos excluídos
foi muito bem sucedido nas décadas de 70, 80 e começo de 90, mas os
pentecostais começaram a fazer uma "franja de mercado" (termo da
administração utilizado para quando uma instituição ou empresa começa a lançar um
mesmo produto, só que adaptado para alcançar outra classe econômica que não era
alcançada anteriormente), e na sua visão de evangelizar a todas as pessoas
possíveis, começaram a melhorar a forma de seus discursos adequando-os para
jovens e empresários.
A Igreja Universal do Reino de
Deus, que no seu começo era basicamente composta de galpões alugados para o
povo, passou a construir suntuosos prédios e chamá-los de catedrais, com
fachadas espelhadas, suntuosas e luxuosas. A Igreja Renascer em Cristo, do
apóstolo Estevam Hernandes, ficou famosa por ter como um de seus membros o ex-jogador de futebol Kaká (com seu dízimo
milionário), e ficou marcada por ser uma das primeiras igrejas a investir
pesado na música como meio de evangelismo - grupos como Renascer Praise e Banda
Resgate saíram desta igreja e inspiraram a conversão de muitos jovens.
Outro exemplo bem sucedido de
alcance da juventude foi a Igreja Bola
de Neve, que nasceu de uma cisma com a Igreja Renascer no ano de 1999, que
ficou famosa por líder seu apóstolo Rina, usar como púlpito uma prancha de surf, e agregar um público que antes era
desprezado pelas igrejas pentecostais e tradicionais: rockeiros, hippies,
surfistas e jovens tatoados.
Prancha de Surf que serve como púlpito para a a Igreja Bola de Neve: um símbolo para a juventude da igreja |
Em Goiânia, "explodia" um
movimento evangélico liderado pela Igreja Videira, que em 10 anos se
transformou em uma mega igreja, a partir de 1999, com sua grande maioria de
jovens. Por sua vez, a Igreja Batista da Lagoinha em Minas Gerais, com o grupo
Diante do Trono, e hoje com o Pastor
Lucinho arrastaram multidões de jovens. A Igreja Sara Nossa Terra também
ficou profundamente marcada por um evangelismo voltado para jovens, e cresceu
muito com este foco.
Ou seja, a partir de 1999
explodiu-se uma onde de conversão de jovens, empresários, pessoas com melhor
poder aquisitivo, e consequentemente de pessoas com maior nível de
escolaridade. Os próprios pastores evangélicos mudaram completamente o perfil:
muitos deixaram de ser simples pregadores, com aparência campesina ou sem
formação superior (os pastores de igrejas históricas geralmente eram formados
em teologia, filosofia, mas eram poucos numericamente e geralmente de pequenas
congregações; os pastores pentecostais geralmente não possuíam formação
acadêmica ou mesmo educação formal, mas contavam com o carisma do povo e uma
retórica inflamada), passaram a ter um discurso mais afinado com as
vicissitudes de uma nova geração de jovens e empresários.
E os próprios líderes religiosos
passaram a cursar psicologia: O famoso e polêmico pastor Silas Malafaia, que se tornou líder da Igreja Assembleia de Deus da
Penha (RJ) em 2010, depois do falecimento de seu sogro (que naquela época era
pastor presidente), colocou em marcha um grande projeto de expansão da Igreja, cuja
meta de curto prazo (2017) era alcançar 10 mil membros e a de longo prazo
(indefinido) é ter mil congregações (tinham 97 em 2010, abriram 250 em 2016),
mudando o nome para Igreja Assembleia de
Deus Vitória em Cristo. Silas Malafaia é formado em psicologia pela
Universidade Gama Filho, no Rio de Janeiro, e comumente expressa fervorosas
opiniões contrárias à homossexualidade, colocando-se ferrenhamente contra
movimentos LGBT no campo da política - este modo fervoroso de Malafaia em
pregações contra questões referentes à homossexualidade o colocou em choque
contra o Conselho Federal de Psicologia no ano de 2013, em que foi alvo de uma
nota de repúdio desta entidade[iv].
O estilo de retória de Malafaia é bastante ácido, e o pastor possui um humor
com o estilo bastante colérico, com uma capacidade de argumentação acima da média
dos pastores evangélicos, o que geralmente o coloca em posição de ataque e em
diversas polêmicas na mídia.
Veja o vídeo de Malafaia criticando
o CFP:
O pastor Malafaia era um grande
crítico dos movimentos celulares e do neopentecostalismo, mas converteu-se ao
movimento especialmente a partir do ano de 2010, quando se aproximou da
teologia da prosperidade, inspirado especialmente por seu contato com os
pastores Morris Cerullo e Mike Murdock (famosos e controversos expoentes
estadunidenses da teologia da prosperidade). Outro ponto interessante é que
Malafaia se aproxima de líderes como Renê Terra
Nova e Valnice Milhomens, de
quem era crítico contumaz. A aproximação com o movimento neopentecostal
aumentou a exposição de Malafaia na mídia e consequentemente seu choque com
temas relacionados à psicologia.
Mas Malafaia não é o único pastor
de mega igreja formado em psicologia: o pastor presidente da Igreja Videira, Aluizio Silva é formado em Psicologia
pela PUC Goiás, assim como a bispa Rubia
Souza[v],
líder da Igreja Apostólica Fonte da Vida (espora do Ap. Cesar Augusto). Segundo
o site de sua própria igreja[vi],
a bispa Lucia Rodovalho, líder da
Igreja Sara Nossa Terra é formada em Psicologia pela Universidade Católica de
Brasília, especialista em terapia de casais e famílias e doutora em filosofia.
A apóstola Lilian Maria Ballester
Marques, esposa do apótolo Arlles Marques, é psicóloga registrada sob o CRP
06/21130 (São Paulo).
Os nomes citados são referentes à
líderes de igreja de renome nacional, e uma pesquisa mais exaustiva certamente
revelaria outros nomes de peso, mas o certo é que, para além destes, existem nomes
de comunidades locais, igreja médias, pequenas e grandes, filhos e filhas de
pastores evangélicos que adentraram às universidades a partir dos anos 2000
(crescendo exponencialmente a partir de 2010). Eu mesmo me recordo de nos 5
anos de minha graduação (entre 2009-2014) ter tido aula ou conhecido 8 pastores
em meu curso, e 5 filhas de pastores que estavam se preparando para atenderem
melhor às suas comunidades.
E o que motivou os evangélicos a entrarem cada vez mais na psicologia?
- O rompimento, por parte dos
neopentecostais, de alguns preconceitos que reinavam no meio pentecostal, como
o de que o "único conhecimento que importava era o da Bíblia", ou o
de que "estudar demais faz a pessoa se desviar dos caminhos do
Senhor" (muitos evangélicos já escutaram essas palavras de crentes
"mais velhos" ou de algum pentecostal), por exemplo;
- O advento da Teologia da
Prosperidade, que mesmo que não tenha atingido todos os neopentecostais, em
diferentes níveis ajudou a gerar uma reflexão sobre a relação dos evangélicos com
o dinheiro, de que não era pecado obtê-lo (este era mais um preconceito
pentecostal, o de que "ganhar muito dinheiro era pecado", o que
fadava muitos crentes à uma vida de pobreza) ;
- O "natural" aumento da
escolaridade da população brasileira nos últimos vinte anos, fruto de diversas
políticas públicas educacionais, assim como o empenho dos neopentecostais em
atingir classes mais educadas da sociedade brasileira;
- E por último, e muito interessante,
é que o movimento celular e G12 foi um
dos principais mecanismos para espalhar a Teologia da Batalha Espiritual,
Libertação e Cura Interior: igrejas inteiras foram dedicadas à isto, como
exemplo o Ministério Ágape de Reconciliação, da apóstola Neuza Itioka. Além de se especializarem em rituais de exorcismo
("Ministração de Libertação" na linguagem neopentecostal) passaram
também a desenvolve o que chamam de "Ministério de Cura Interior" que
é uma espécie de aconselhamento que mistura elementos de psicologia, teologia e
das próprias crenças da comunidade. Este movimento de "Cura Interior"
que cresceu muito no Brasil a partir dos anos 2000, por conta de forte
influência de líderes estrangeiros como os apóstolos Peter Wagner (EUA), Chuck
Pierce (EUA), Rony Chaves (Costa
Rica), Cindy Jacobs (EUA), Harold Caballeros (Guatemala), Ana Méndez Ferrel (México), Bábara Yoder (EUA) e Edgar Silvoso (Argentina), que
refinaram o interesse por manifestações psicológicas, parapsicológicas e
"espirituais" - antigamente o interesse por "possessões
demoníacas" estava mais a cargo da IURD e outras igrejas pentecostais de
transição, mas eram quase sempre atribuídas à bruxarias e/ou disputas com
religiões afrobrasileiras, sendo que o movimento da Teologia da Batalha
Espiritual passou a interessar-se por questões psicológicas e a opor-se à
religiões orientais e também ao movimento New
Age, dentre outros.
Todos estes movimentos culminaram e
fomentaram a ascensão dos evangélicos na psicologia brasileira nos últimos 20
anos.
E isso é algum problema?
Os evangélicos, como quaisquer
outros cidadãos, têm todo o direito e liberdade de fazerem o curso que quiserem,
e há que se ressaltar que a condição ou profissão de uma crença não tornam
necessariamente sujeito A ou B preconceituoso ou incapaz. Isso tem que ser dito
pois já vi absurdos que beiravam ao fascismo de propor que evangélicos não
deveriam fazer psicologia (sim, já vi estudante de psicologia propondo essa
barbaridade).
Acreditar em Deus A ou B não faz de
ninguém mais ou menos racional, pois o terreno da Ontologia da divindade não
diz respeito à ciência, mas sim à filosofia. Logo acreditar em deus A ou B, ou
ter crença X ou Z não são impeditivos para ninguém, DESDE QUE essas crenças não
firam os direitos humanos.
Algumas pessoas também acusam os
evangélicos de um pensamento "conservador", mas pensemos: se em uma
sociedade todos fossem "progressistas", como nunca seremos homogênos,
dentro dos próprios progressistas haveriam conservadores (pelo simples fato de
não serem tão progressistas como os demais). Logo o pensamento conservador é
condição sine qua non para o
pensamento progressista, e lhe serve de contrapeso.
"Já sei Murillo, então o problema
é o preconceito!" Sim... e não, cara pálida! Um fato é que todos nós temos
preconceitos, e ninguém está 100% pronto a abandonar os seus; um exemplo:
"você comeria uma barata frita?" (se a sua resposta foi não, saiba
que existem muitas pessoas em países asiáticos que acham uma delícia, e que elas
podem ser bem nutritivas). Nós vivemos em preconceitos, todos nós os temos e
nunca seremos totalmente livres destes... o
problema são os preconceitos lesivos, que muitas vezes são expressados de
forma a ferir a dignidade e as liberdades do próximo. Estes sim, muitas vezes,
são encontrados em líderes e fomentados em seus seguidores religiosos.
Daí que temos que entender a
diferença entre dois termos: a religiosidade
e a espiritualidade. A própria
psicologia da religião vai estudar a diferença sobre estes! A primeira pode ser
compreendida como um conjunto de crenças e ritos, muitas vezes irracionais, que
são expressados de forma inconteste, inflexível, institucionalizada e muitas
vezes reforçada socialmente. Sobre espiritualidade, pode se entender a devoção
pessoal, singular do sujeito com seu numinoso[vii],
e que não necessariamente afeta negativamente o meio social de quem a vive em
decorrência de sua expressão.
Mas a psicologia é laica!
Laicidade é uma postura de não influência da religião nas decisões políticas, sociais, econômicas, etc, etc... mas há uma questão conceitualmente filosófica aqui: o homo sapiens, também é homo socius, homo politicus, economicus e religiosus, e todos estes elementos coabitam no mesmo ser, e por isso nunca estará dissociado (pois a pessoa pode ser atéia de um deus, mas pode ter construído seu próprio deus de outra forma, ou ser crente na descrença).
"Mas, Murillo, os evangélicos
só enchem o saco da população!" ou então "a religião nunca contribuiu
em nada para a psicologia"... calma gafanhoto! Lembra da reforma
protestante que eu falei no início do texto? Foi por ela, somente por ela, que
foi possível desafiar o corrupto sistema católico medieval, desenvolver o
capitalismo, urbanizar o mundo, avançar nas ciência e assim por diante até o
nascimento da psicologia!
Mais especificamente: na era
medieval católica a leitura e escrita eram de domínio da alta burguesia e do
clero, que lia e rezava as missas em latim. Com a reforma protestante, um dos
primeiro atos de Martinho Lutero foi
a tradução da Bíblia para o alemão, e consequentemente a comunidade luterana
passou a desenvolver um esforço enorme para alfabetizar as pessoas para que
pudesse ler, afinal, um dos reclames da reforma protestante foi que todos
pudesse examinar as escrituras.
Lutero era um monge altamente
instruído, e foi a sua versão da Bíblia uma das grandes responsáveis por
desenvolver o alemão moderno, assim como a filosofia alemã: os teólogos alemães
se esforçavam bastante em conhecer o significado das palavras na bíblia, e foram
os pais modernos da hermenêutica (ciência
e arte de interpretação de textos), primeiramente teológica, e posteriormente
filosófica, como por exemplo, através dos trabalhos de Friedrich Schleiermacher (1768-1834)[viii].
Foi o desenvolvimento da
hermenêutica alemã, ligada diretamente à Lutero, que foi sendo desenvolvida também
por teóricos como Wilhelm Dilthey
(1833 - 1911), a Martin Heidegger
(1889 - 1976), e posteriormente por Hans-Georg
Gadamer (1900 - 2002), que abriram as janelas para a possibilidade de
interpretação do fenômeno psíquico humano. Eu não acredito que foi coincidência
a psicologia moderna ter surgido justamente na alemanha, com Wundt pois houve
uma série de desenvolvimentos filosóficos, que saíram da hermenêutica e
chegaram nas discussões idealismo vs. realismo, até as propostas filosóficas da
Immanuel Kant (1724 - 1808) que prepararam o caminho para o surgimento de ma
proposta de psicologia moderna.
Ainda assim, se você não estiver
covencido de que a religião pode ter trazido algo de útil par a psicologia,
veja a relação do cogito de Descartes (1596 - 1650) que são extraídas da
filosofia de Agostinho de Hipona (354 - 430 d.C;), vulgo Santo Agostinho, e que
ajudaram a influenciar o destino da ciência psicológica. Foram muitos os padres
que trouxeram a psicologia para o Brasil[ix],
e para Goiás[x].
Mas não só do cristianismo: religiões orientais também influenciaram a
psicologia por meio de suas filosofias, como as contribuições que o Zen Budismo
e o TAO levaram para a Gestalt Terapia.
O que quero dizer com isso?! Quero
dizer que mesmo as religiões podem ter alguma filosofia útil, ou alguma semente
de complexidade (eu adoro a analise que Edgar Morin faz sobre isso nos seu
livro "Meus filósofos", quando fala das contribuições que Jesus e
Buda deram para a sua filosofia, assim como Freud, Piaget e Bethoven... hehehe),
mas que estas devem ser vistas sim sob um olhar laico: ter uma religião não
significa necessariamente utilizar da mesma para querer obrigar ninguém à nada,
mas tolerar as crenças sempre que respeitem os direitos humanos.
O problema é que o movimento
evangélico muitas vezes "enche o saco da sociedade", não porque está cumprindo
uma "missão divina de incomodar os infiéis a respeito de seus pecados",
mas porque está cheio da contaminação de uma pequena burguesia religiosa que
dita as regras para seus fiéis em busca de expandir seu poder político e
econômico. Existem sim comunidade religiosas sinceras e autênticas, mas
infelizmente os porões de muitas congregações estão cheios de corrupção (basta
ver os vários escândalos que são noticiados envolvendo corrupção por parte de agências
religiosas).
Neste sentido, para finalizar, não
se deve utilizar as suas crenças religiosas dentro da psicologia, seja como
ferramenta de dominação ou de imposição ideológica, mas estas sempre podem e
devem ser examinadas à luz da própria ciência, afinal de contas, crenças são
também compostas por mecanismos psicológicos. Por isso, há que frisar que laicidade não significa não poder
acreditar, pregar ou debater as suas crenças, mas implica em uma relação de
respeito à diversidade de crenças, posturas e sujeitos. Você concordaria
comigo que precisamos de religiões cada vez mais laicas?
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Imagens: Extraídas do Google Imagens
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Murillo Rodrigues dos Santos, psicólogo (CRP 09/9447) graduado pela Pontifícia Universidade Católica de Goiás (Brasil), com formação em Terapia de Casais e Famílias pela Universidad Católica del Norte (Chile). Mestre m Psicologia pela Universidade Federal de Goiás (Brasil). Possui formações em Gestão, Empreendedorismo e Políticas pela Fundação Getúlio Vargas (Brasil), Fundación Botín (Espanha), Fondattion Finnovarregio (Bélgica), Brown University (EUA) e Harvard University (EUA). Diretor do Instituto Psicologia Goiânia, psicólogo clínico e organizacional, professor de psicologia da religião.
[i]
Vide Max Weber em seu livro "A ética protestante e o espírito do
capitalismo".
[ii]
Dados do IBGE: http://censo2010.ibge.gov.br/noticias-censo?view=noticia&id=1&idnoticia=2170&t=censo-2010-numero-catolicos-cai-aumenta-evangelicos-espiritas-sem-religiao
[iii]
Dados do Datafolha: http://datafolha.folha.uol.com.br/opiniaopublica/2016/12/1845231-44-dos-evangelicos-sao-ex-catolicos.shtml
[iv]
Notícia da Nota de Repúdio do CFP: http://site.cfp.org.br/cfp-se-posiciona-contrariamente-declaracoes-do-pastor-silas-malafaia/
[v]
Informações do Twitter da Bispa: https://twitter.com/bparubiadesousa e do
Jornal o Popular: http://www.opopular.com.br/editorias/magazine/m%C3%A9rito-e-coragem-1.287844
[vi] Segundo
site de sua própria igreja, no dia 09 de agosto de 2017: http://saranossaterra.com.br/bispa-lucia/
[vii]
Dá uma Googlada para saber do que se trata, ou então vem fazer algum dos Cursos
de Psicologia da Religião que eu ministro (hehehehe).
[viii]
Para saber mais sobre as ideias de Schleiermacher: http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1517-24302012000200001
[ix]
Vejam o exemplo do Padre Benkö Antal, professor da PUC Rio.
[x][x]
Vide o exemplo do Padre Victoriano Baquero Miguel, profesor da PUC Goiás.
Que texto ótimo!
ResponderExcluirParabenizo pelas considerações aqui abordadas.
Religião, comumente confundida com crença/fé, é agrupamento social.
E, sim, concordo que precisamos de religiões mais laicas, com menos interesses relativos ao ego e ao poder (de influência, político e econômico).